domingo, 15 de novembro de 2009

Uma viagem pelo chá como mecanismo de comunicação

Uma viagem pelo chá como mecanismo de comunicação
Ex. Mo Grão Mestre Sinense e caro amigo José Rebelo,
Excelências
Quero em primeiro lugar agradecer o convite da Confraria Atlântica do Chá para partilhar convosco algumas reflexões sobre o chá e o mundo, convite que muito me honra.
De acordo com o consenso formado no Ocidente (1), foi com o “Tratado das Coisas da China” do dominicano Frei Gaspar da Cruz publicado quando da sua morte em 1570 – em larga medida uma compilação de um grande número de relatórios e notas de viagens portuguesas de quinhentos – que se formalizou o conhecimento europeu da importância do chá na cultura chinesa.
No mais citado testemunho que Frei Gaspar da Cruz nos deixa, afirma-se:
“Qualquer pessoa ou pessoas que chegam a qualquer casa de homem limpo, têm por costume oferecerem-lhe em uma bandeja galante uma porcelana, ou tantas quantas são as pessoas, com uma água morna a que chamam chá, que é tamalavez vermelha e mui medicinal, que eles costumam a beber, feita de um cozimento de ervas que amarga tamalavez. Com isto agasalham comummente todo género de pessoa[s] que têm algum respeito, quer conhecidos quer não, e a mim ma ofereceram muitas vezes.” (2)
Três décadas mais tarde, na viragem do século, outro missionário português, o padre João de Lucena, autor da “História da vida do Padre Francisco de Xavier” (3) observa:
“Os japoneses dão valor às coisas mais frívolas e ridículas como os utensílios para preparar uma cosedura de ervas a que chamam chá”
Temos portanto que na visão dos missionários portugueses – na verdade, a visão que foi a da Europa – os rituais e a importância dadas a “esta água morna a que chamam chá”, ou esta “cozedura de ervas” se preferirem, são de uma total frivolidade e mesmo ridículo.
Realce-se que Frei Gaspar da Cruz – tal como a generalidade dos autores portugueses de quinhentos – é considerado (4) como tendo uma visão apologética da sociedade chinesa, excepção feita às questões da fé. Na verdade, penso que muitas das caracterizações à extrema discriminação da mulher ou à crueldade no tratamento dos crimes não são de todo em todo apologéticos.
A estupefacção demonstrada pelo papel atribuído ao chá não parece ser derivada do preconceito no caso de Frei Gaspar da Cruz, embora o mesmo já não se possa dizer do padre João de Lucena, que nunca testemunhou directamente os rituais de que se mostra tão crítico.
Na verdade, o chá vai aparecer como um elemento simbólico – por oposição ao vinho – no confronto teológico do budismo dominante na Ásia com o catolicismo dos missionários portugueses.
O chá, ou melhor a Camellia Sinensis que lhe dá origem, é uma planta originária do Sudoeste da China, no Yunnan e no Sichuan. A mitologia oficial do início do seu uso para chá data-a de 2.700 Antes de Cristo. Seja isto verdade ou mito, é no entanto seguro que o seu consumo estava já generalizado antes da entrada na China dos missionários budistas oriundos da Índia por via da rota da seda, mas é o budismo que impregna o ritual do chá tal como ele foi visto pelos Europeus de quinhentos.
Mesmo deste ponto de vista, é tentador encontrar um paralelo entre o papel do vinho no catolicismo e o chá no budismo. Recordemos aqui, que o vinho é oriundo do Grande Médio Oriente, tendo a sua difusão precedido o cristianismo, com a vinha mais antiga descoberta até hoje situada no Curdistão Iraniano.
Como sabemos, o chá torna-se conhecido na Europa sob a forma medicinal, mas na verdade só depois da sua famosa inclusão nos rituais da Corte Britânica por Catarina de Bragança ele ir-se-á tornar, também na Europa, o mais refinado dos mecanismos sociais de comunicação.
Do muito que se escreveu das razões e lógicas que levaram Catarina de Bragança a introduzir o chá na corte britânica – de que um carregamento viria a complementar parte do dinheiro em falta no vultuosíssimo dote de casamento que incluiu Tânger e Bombaim – é pouco provável que se tratasse da transposição de um costume já arreigado na corte portuguesa.
A verdade é que o chá e o seu ritual que se espalharam lentamente na Ásia vão tornar-se um elemento central da cultura ocidental. A sua importação da China era no entanto um fardo unilateral cada vez maior nas relações comerciais com esse país, pouco dado a importar o que quer que fosse do Ocidente.
A imposição da importação pela China do ópio produzido na Índia britânica como forma de balançar a importação do chá, imposição feita por via das guerras do ópio, havia de marcar de forma profunda as relações da China com o Ocidente.
No rescaldo do embate, a China seria não só forçada a abrir as suas fronteiras ao ópio e a todo o comércio ocidental, como viria também a perder o seu quasi-monopólio sobre a exportação de chá, cuja cultura se generalizou em numerosas paragens do Império Britânico com clima tropical ou subtropical.
Nesta matéria do chá, realce-se que os Açores têm uma posição deveras sui generis, no sentido em que, com uma contribuição chinesa voluntária, e no culminar de um extraordinário movimento romântico de renascimento agrícola consubstanciado na Sociedade Promotora da Agricultura Micaelense, o chá se juntou a um apreciável lote de culturas, plantas ornamentais e indústrias agro-alimentares, tornando-se assim na única região europeia com uma produção comercial de chá.
O chá tornou-se a mais omnipresente das bebidas, estatuto que veio gradualmente a perder depois, por força da concorrência de outras bebidas primeiro e da perda da sua dimensão ritual depois.
Os rituais antigos da elaboração e da degustação do chá, o gong-fu-cha ou o lao-ren-cha, que podem levar uma tarde inteira, propiciando um tempo e um modo de comunicação extraordinários, são vistos literalmente como formas fastidiosas, morosas e de gente velha de tomar chá e sobrevivem apenas como curiosidades antropológicas.
E no entanto, se alguém me perguntar qual o ritual que eu mais associo ao Iraque dos nossos dias, em torno do qual me lembro de conversas sem fim, nas montanhas do Curdistão a Norte, nos arrabaldes de Nassyriah a Sul, nas imediações de Al-Ramadi a Oeste ou em Bagdade a Leste, o chá é o elemento central em todas elas, sendo igualmente certo que foi e é o chá de São Miguel a imagem de marca que continuo a trazer comigo em todas as minhas deambulações pelo Grande Médio Oriente.
De acordo com as estatísticas disponíveis (6) a Turquia ocupa o primeiro lugar do mundo em consumo de chá por habitante, com o Irão ocupando o quinto lugar e com outros países da região a situar-se no cimo da escala, sendo que o Iraque não aparece sequer nos primeiros vinte e seis lugares internacionais, mas tudo me leva a crer que esse é um problema das estatísticas, e que o consumo de chá no Iraque não fica atrás do registado nos seus vizinhos.
Dir-me-ão que a prevalência do chá no Grande Médio Oriente, do chá marcado por um tempo que já não é o nosso, não abona em favor do chá ou da região, por nele não se poderem rever as virtudes da tolerância pela fé e pelos rituais dos outros que caracterizava a cultura budista do chá tal como os missionários portugueses a conheceram.
Mas mesmo aqui creio que não devemos ser precipitados nos julgamentos ou lineares nos raciocínios, porque a par da extrema violência e intolerância, o Iraque é o país em que eu já testemunhei actos da mais profunda humanidade, compreensão e altruísmo.
O chá, aquele que os nossos pais associaram a uma cultura de classe, ignorando que ele se popularizou no submundo londrino antes de ser apropriado pela aristocracia, aquele que se espalhou com uma cultura religiosa notável, aquele que desencadeou o drama das guerras do ópio, mas que materializou os sonhos da geração de José do Canto, foi agora sacrificado a uma cultura que queimou o seu tempo.
Às guerras das especiarias, do ópio e do chá, vimos primeiro suceder as guerras dos fanatismos raciais, culturais, políticos e sobretudo religiosos – formas mais perigosas e mortíferas de alienação do que as propiciadas por qualquer droga conhecida – e vemos muitas vezes como a outra face dessas guerras, as guerras pelos hidrocarbonetos.
Esses mesmos hidrocarbonetos que revolucionaram as nossas noções de espaço e de tempo, que subverteram um mundo que se podia dar ao luxo de perder horas em rituais do chá, justificaram e justificam contudo a conivência com os maiores crimes contra a humanidade.
É um drama que atinge gigantescas dimensões exactamente no Iraque e para o qual o remédio passa por entendermos que os milhões de deslocados e refugiados iraquianos – na sua esmagadora maioria civis que têm como única culpa a sua etnia, a sua cultura, a sua religião, o seu pensamento ou o pensamento dos seus progenitores – valem muito mais do que todo o petróleo do planeta.
É certo que nem todos temos a felicidade de vir de uma terra – ou representá-la internacionalmente – que tem no chá um dos seus símbolos, mas mesmo assim arrisco-me a deixar aqui uma sugestão aos que agora nos representam: lembrem-se de trazer convosco um pacote de chá, lembrem-se de passar tempo suficiente a apreciá-lo com os vossos interlocutores e esqueçam por um momento o que julgam ser essencial, mas que é na verdade mais frívolo e ridículo do que imaginam.
Ponta Delgada, 2009-10-29
(Paulo Casaca)

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